Dança é também filosofia

Registro resumido da conferência proferida por Joana Lopes nos dias 31 de outubro, 01 e 02 de novembro na ocasião da temporada da dança "Eólitos" na Sala Renée Gumiel. Em "A Dança é Filosofia", ela apresenta a perspectiva da semelhança como necessidade da atualidade, travessia para outras dimensões da arte e da sociedade. No segundo tema, "As Veias da Dança", estão em causa o corpo acabado e o corpo inacabado, conceito explorado no espetáculo "Eólitos". Já "A Dança e o Ecossistema" é um manifesto sobre a revalorização humana na atualidade de "endeusamento" virtual , divulgando o conceito de arte ampliada.


Joana – Gostaria, Andreia, que você repetisse alguns argumentos que colocou quando me convidou para essa conversa sobre dança e filosofia. Quero esclarecer que não sou especialista em filosofia, mas pesquisadora, professora, diretora e dramaturga da dança.

Andreia - Eu acho que quando comecei a trabalhar com a Joana e me envolver com essa proposta de Coreotopologia havia uma tentativa de encontrar alguma luz no fim do túnel pra uma necessidade que está no âmbito da pedagogia de dança e da composição de dança cénica, dos cruzamentos entre o que tradicionalmente entendemos por Pedagogia e Composição. Eu acho que é muito feliz nesse encontro podermos aprofundar estes temas, o que eu dizia para Joana é que parece que a gente vive num período talvez geral da arte e da cultura em que é difícil falar sobre coisas com um pouco mais de nitidez, de maneira que esta fala possa estar implicada num trabalho coletivo, com várias pessoas que estabelecem propósitos mais ou menos comuns. Ou seja, como é imprescindível a dimensão do discurso verbal para as práticas de ensino e criação.

Joana – Seria então proveitoso se cada um pudesse falar da sua inquietação.

Uxa Xavier - Eu trabalho com crianças, dança contemporânea com crianças e me coloco num lugar muito mais de pesquisadora e criadora. E atualmente também dirijo um grupo que chama Lagartixa na Janela, que trabalha com performance em espaços públicos e a nossa matriz, é o universo da infância, e a criança performer, sobre esse ponto de vista. Mas eu acho que tem uma questão aí, uma das primeiras que você colocou, desse aprofundamento quando se encontra um grupo, quando se vai criar um trabalho que você começa a identificar os escapes, que nunca vai numa potência de concretude, de uma transformação, não sei, como você foi falando eu fui imaginando. eu queria entender um pouco o que é que você imagina, o porquê que isso deve acontecer, você imagina? Porque eu também sinto isso, e às vezes eu também fico tentando dar nomes pra essas reações, ou pra essas ações, que eu preciso nomear pra entender. Porque quando eu to dirigindo, ou no grupo, tudo acaba ficando mais ou menos e poderia ficar mais. E eu tenho algumas suspeitas.

Barbara Freitas - Eu trabalho como educadora, como intérprete e como dançarina, sou pedagoga de formação, e ah, sei lá, eu já passei por vários lugares dentro e fora da arte. Mas eu acho interessante essa questão do grupo que tem um trabalho concreto, colectivo, um gesto, de alguma maneira, virar dança. Essa prática e outro lugar que você imagina, qual é esse lugar ? Quais são as coisas que escapam? E que não consegue se propagar, ou permanecer, ou se desdobrar numa outra coisa.

Eli - Estou trabalhando no projeto Ambagris há alguns meses como assistente de direção artística. Eu não sou da área da dança, sou formada em turismo e tenho um trabalho com movimentos sociais há quase quatro anos. Então tenho uma visão como cidadã, como interessada nessa linguagem artística e também quanto ela pode se expressar através de questões de políticas públicas, através da sociedade, das questões urbanas e eu tenho, dentro do possível, participado dos diálogos e encontros pra entender melhor e pra investigar algumas questões coletivas da necessidade de fazer com outros artistas dançando junto pra que isso pudesse refletir nos trabalhos de grupo. E eu queria saber um pouco se vocês conseguem colocar dentro de um histórico de Brasil, ou até fora de Brasil, se ocorreram momentos em que a dança já foi muito mais comunitária, participativa e isso de repente se perdeu. Ou se a gente não chegou ainda nesse ponto, que a gente caminha pra que isso aconteça.

Camila - Eu sou produtora do projeto Âmbargris, de espetáculo, aqui dentro. Eu também nunca tinha trabalhado com dança. Eu questiono quando se perdeu a dança e quando eu vejo as pessoas questionando percebo como a dança pode fazer uma diferença revolucionária, se a gente entender a importância de cada movimento que a gente faz com o cosmo.

Joana - Vou começar pelo sentido da dança, que parece ser uma questão do grupo ou perguntas, sofrimentos e indagações, algo presente em cada um, sobretudo a presença da ausência ou a falha de nominação e uma consequente fragilidade da identidade artística e social. A dança aponta pra onde? O que faço do meu tempo na dança e com a dança? Vale a pena? Será que eu escolhi isso mesmo? Será que isso é meu caminho? Porque me ocupar da dança?

Parece frivolidade, meio fútil, dança é só para entretenimento e a televisão tá cheia disso. Então, me parece que essas questões estão voltadas pra uma primeira, que é a fundamental ou o sentido da dança. E nessa medida a dança se volta pra filosofia, pedra angular que leva alguns bailarinos a argumentar: Eu danço e você quer me falar de filosofia? Eu quero é agir não tem sentido ficar pensando. Mas falar de dança e filosofia seria apenas balançar-se numa rede e filosofar?

O sentido da dança quando percebido nos leva a dar um salto quântico, então vamos pensar em nossas vidas. Quando nos dedicamos a pedagogia da dança ou a direção de um espetáculo estamos com o outro que confirma e testemunha nossa existência. Outro esclarecimento para continuar: sou agnóstica, não pertenço a seitas de auto-ajuda, e se vou empregar a palavra Deus, algumas vezes, queria que vocês ouvissem como o imponderável. Entre Deus e a dança não precisamos de intermediários, este é o ponto, penso eu, que nucleariza a questão filosófica da dança, e lembrando a filósofa Veronique Fabbri: "dançar é inventar outras vidas".

Voltando ao princípio da indagação nuclear, a dança foi expulsa do cotidiano há mais de 500 anos, na passagem pra modernidade ela foi expulsa do cotidiano, e a história da dança do ponto de vista da cronologia, geralmente o que se ensina é uma trapaça segundo o filósofo italiano Fabricio Andreella. É uma trapaça com consequências pra quem faz a cultura da dança, pra quem aprecia a dança e pra quem pensa dança na cultura como no caso das políticas públicas. Nos perguntamos se o médico lida com a saúde ou se ele lida com a doença? O engenheiro lida com o material ou ele lida apenas com cálculos abstratos? O professor lida com o que? E O orientador em dança seja coreógrafo ou professor? Nós lidamos com dança. Voltando, afirmo que a história da dança do ponto de vista da cronologia é uma trapaça e nesta constatação encontramos argumentos de reflexão filosófica. Os documentos mais antigos revelam que a dança nunca precisou de intermediários entre ela e Deus. Ela ascende a Deus diretamente e quem lida com crianças na dança sabe do que falo.

Então, a dança carrega em si seu sentido, ela conversa com Deus ou com o imponderável, e afirmei que a trapaça nos legou uma história oficial da dança que criou outra dimensão para a dança no curso da organização da civilização quando perdeu-se de si mesma e ainda estamos convivendo com ela sob uma identidade falsa. Mas no início da modernidade o que aconteceu? Surgiram os intermediários nas figuras do Estado e da Religião, um exemplo atual desta intervenção criminosa na arte presenciamos na morte misteriosa do cineasta italiano Pasolini, que, talvez, se explique porque ele demonstrou em seus filmes que não precisava de intermediários entre ele e Deus, e a Santa Sé não apreciou seus filmes, seu assassinato não foi investigado como deveria, e nem será.

Neste enclave surge, de uma forma decisiva, o cristianismo levando o corpo aos infernos e a palavra aos altares mais altos da inteligência, ela como Deus em corpo presente nos sermões. E a dança deve ser contida, vigiada e aprisionada em locais sob controle do Estado e da Igreja porque jamais será extinta, ela é uma erva daninha.

Como pensar no sentido da dança se, ainda, não encontramos a sua plenitude fora dos blocos de carnaval quando a jaula é aberta no período que antecede a quaresma, ou o sacrifício da carne, quando nos é permitido sair para um passeio pela nossa própria humanidade.

Então, quem permite dançar e quem permite não dançar? Por que eu não vivo dançando? O mito da técnica em dança significa intermediação?

Vamos nos colocar no papel de intermediários enquanto interessados na sobrevivência da dança seguindo o roteiro da civilização cristã ocidental, como exemplo, digamos que você foi batizado porque a família foi obrigada pelos compromissos assumidos com a inércia da tradição, então percebemos que as intermediações são dos mais diferentes modelos, níveis e comprometimentos. Então, na dança quem são nossos domadores e seus chicotes e qual é o nosso compromisso com eles.

Quando a dança é sequestrada da relação entre Deus e o corpo, o corpo que se move o corpo que procura transcendência, quando ela foi seqüestrada ficou refém de um novo sistema engendrado pela sociedade em acordo com o Estado, e aparece a dança cênica numa nova arena, o palco do teatro ou um salão. E o que acontece? A dança passa a existir segundo códigos específicos, ou o código disciplinador. Vai criar uma identidade falsa, inclusive uma identidade profissional aceita com reservas, como também Deus foi encerrado na igreja, e a dança foi expulsa das praças e ruas, e proibidos os festejos dos pagãos, daqueles que não foram batizados.

A igreja é a casa de Deus e os teatros nossas jaulas, nada a estranhar porque fomos fabricados na jaula como os animais que nascem em cativeiro. Sob a vigilância de domadores mais ou menos criativos pra nos mostrar a divisão e oposição entre corpo e espírito dentro das relações sociais do cotidiano, nossa dança naufraga ou vivenos nos bailes disciplinados pela relação dança/pudor, dança/pecado e no balé clássico a desumanização da dança através da ficção ou o corpo acabado. Não é só a idealização da dança, é a idealização do ser humano, tanto que para dançar é necessário ser especialista. Se você não é especialista, você não dança. E sendo especialista você ganha e é pago na medida da competência. Então pago um bailarino como especialista e será através do especialista em técnicas e códigos que a tradição se repete. Ele é o intermediário que ensina, por exemplo, a primeira, segunda, terceira e outras posições; ou, entre outros, o pas de bourée. A codificação clássica é uma codificação de contenção para o formalismo corporal portanto é preciso reforçar o intermediário que é o professor que conhece o código, que conhece os passos. Para guiar um carro preciso conhecer os códigos de trânsito, isso é uma provocação, porque como posso comparar o ser humano a um automóvel e um código de dança com um código de trânsito? Vou deixar a provocação aí para o tema de amanhã que chamei de veias da dança.

Conversando sobre o sentido da dança podemos caminhar pra a dimensão do rito, um exemplo aqui neste espaço da Funarte sobre os ritos: um cartaz ali perto da porta dizia: "dança é filosofia", ao nosso lado tem um acontecimento, não sei se é de dança, mas eu tenho visto muita gente que não se parece com bailarinos vir aqui fazer dança, estar aqui, estar lá etc. Essa é uma realidade do próprio projeto Ambagris que nos serve para pensar como é que isso acontece, qual é a conseqüência, será este o salto quântico da dança na atualidade?


As Veias da dança

Mas antes de chegarmos ao tema de hoje que abordaremos como as veias da dança faremos uma conexão entre os temas do nosso discurso. Diria que a questão que provoca reflexões é a abordagem da dança como objeto. No Estado Moderno surge a dança que cola no rosto a etiqueta de objeto. O que está dentro do pacote? A desumanição da dança com a perda de seu jogo-corpo simbólico e então, como previsto, perde-se a sensuallidade, seu grande atributo. Ela não é mais uma atividade lúdica e ritual, abandona o sentido do jogo, e quando isso acontece ela se afasta do simbólico e inicia uma trajetória para tecnicamente transformar-se em OBJETO da estética, um animal na jaula definitivamente deslocado da origem. A cada nova oportunidade a pergunta se renova:

- Como vamos viver esta relação com um "objeto" que começa nos bastidores e termina com o ultimo aplauso ou a ultima vaia?

Ou com perguntas utilitárias:

- Hoje não temos público, é uma coisa tão estranha, as pessoas não reconhecem, eu tenho dificuldades... parece que não existo... existo?

Você se hospeda num hotel e a ficha pergunta: Qual é sua profissão? Na indecisão pergunto: qual será a moralmente aceitável ?

Entre a liberdade de dançar e ser bailarino há séculos de constrangimentos. Quero dizer que o reconhecimento da nossa identidade artística é fundamental para pensar a dança além de um simples objeto estético, porque ela é também nosso oficio. Esses clareamentos podem reverter em algo interessante para nossas vidas dentro e fora do palco.

Qualquer código (como garantia política para contenção da dança) existe e existirá enquanto correr o processo cultural onde ela esta imersa. No inicio do século XX artistas da dança incluindo Laban, como um artista excepcional, foram capazes de alterar a coreo-geografia da dança por um viés muito interessante, porque ao desprezar a categoria de especialista pra quem faz dança ascenderam no discurso e na pratica o letreiro onde estava escrito que "Todos dançam" e os bailarinos com eles, porque a dança é necessária à civilização; e mais: porque entre a dança e Deus não ha intermediários. Pergunto se Laban refletia sobre os constrangimentos quando procurava no discurso e na pratica da dança respostas na teoria dos cristais de Hakel e os ensinamentos dos Rosacruzes, causando no plano político da dança um rompimento social fundamentado numa outra filosofia.

O movimento de rebeldia na dança iniciado com a dança alemã causa e reúne a formação dos grupos de Agitação e Propaganda com seus dançarinos espalhados pela Europa Ocidental, também identificados como expressionistas e modernistas. Eles são rebeldes com o próprio ato da dança, porque consideram a dança comunicação interativa. E iniciam outra questão: se todos dançam e todos se expressam a filosofia e a pedagogia da dança nos obriga a repensá-la. Neste sentido o trabalho que estamos fazendo aqui no projeto Âmbargris, imerso na filosofia que todos dançam (assim eu leio), apresenta, entre tantas propostas, nossa criação Eólitos, uma Coreotopologia em parceria entre arte e ciência fundamentada numa noção de composição espacial polidinâmica, onde a composição em dança aparece como um sistema e não como um objeto do qual falamos no primeiro encontro. Esta é uma questão para demonstrar as veias da dança e que deve ser explorada no viés da pedagogia da dança que no Brasil é precária, ou quase inexistente.

A composição tem dois pilares, ou duas linhas que se cruzam, uma teórica e outra prática. Ora, como a questão teórica da dança está reduzida ainda às trapaças da história oficial, segundo Andreella, percebemos que a dança não pode ser afastada do repensar a filosofia. Uma pessoa presente ao seminário de ontem dizia: “Pra mim a grande dificuldade de lidar com a questão da dança é que eu não sei nominal.” Mais do que uma dificuldade ela denuncia uma falha, porque não consegue nominar aquilo que lhe falta, ou aquilo que deseja. Então no sentido perverso ela dança segundo a fala popular.

Então, a falta de nominação ou falha não é simples questão de estilo em transição, seria dar uma identidade própria ao saber, o que se deseja com e para a dança. Ora, não é um conhecimento técnico de dança que gera conhecimento amplo e interdisciplinar, mas compreensão do sistema orgânico e social da dança. Hoje, como ontem, o desejo imediato está voltado para conquistar "técnica". Então, diz um bailarino a outro, eu vou fazer técnica Graham, vou fazer técnica clássica, disso e daquilo. Mas, a dança como um dos sistemas mais provocativos da civilização não recebe qualquer atenção. Eu pergunto ao bailarino se ele não tem dúvidas se considerando um amontoado de músculos e ossos num corpo sem cabeça.

Na pedagogia da dança a composição é fundamental pra o reconhecimento de uma lógica significativa dos movimentos, e para encontrar a arquitetura das trajetórias na lógica espacial. Toda forma contém um conteúdo, qual é o conteúdo de que nós estamos falando? Esta questão não é exclusiva do coreógrafo, mas também, e sobretudo, do bailarino que interpreta, partindo do principio que ele em corpo presente deve transgredir e ultrapassar as grades da jaula, pois seu movimento veio da profundeza da origem do estar sendo humano.

O pão não vem antes da arte ou a arte vem depois do pão. Se o projeto é arte, o pensar é ouro, essa é uma decisão individual, mas deixo claro que meu posicionamento não é entre o certo e errado, mas o fazer arte como projeto de vida, a dança como sua linguagem é uma opção radical, então você cria o seu salto quântico.


Dança e Ecossistema

Nossos temas se entrecruzam: primeiramente conversamos sobre Dança e Filosofia, abordando as contenções e restrições da dança no correr da historicidade da dança; no segundo encontro tentamos ver as Veias da Dança; e, para hoje escolhi a Dança e o Ecossistema como tema de conversa sobre a ambientação da dança.

É provocativo pensar em ecossistema relacionando Dança e Natureza, a partir da premissa do homem como alguém que constrói ou destrói a Natureza segundo um discurso que se completa dizendo: “você necessita da Natureza para continuar vivendo, deixe um mundo para seus netos!” – reforçando a idéia de natureza como simples objeto de uma dupla moral. Contudo, sabemos bem que a natureza é uma força maior que contém o homem mas que não é contida por ele.

Relacionando Dança e Ecossistema afirmo que a natureza incluindo o ser humano é também o ambiente da dança. Esse falar de “ambiente” quer dizer que a dança se estende, se espraia, além dos palcos. Recorro a uma imagem em conversas com os atores trazendo a imagem da água da chuva, dos rios e mares. Ela vem para espraiar-se, penetrar a terra, compreender a dança nesse enfoque é também aceitá-la como sistema abandonando a ideologia da dança como objeto de decoração e de contemplação.

A nossa arte da dança hoje, vem e vai para onde?

O que fertilizar? Relacionar- se com o que?

Para que a dança seja realmente fertilizadora é necessário que tenha um canal, forme um fluxo, pois, a dança além de polissêmica é polifuncional, e para ser energia precisa de um canal que a transforme, como acontece com a água que se transforma em energia elétrica, o vento em energia eólica, nossa vida depende de energia canalizada para que as coisas aconteçam, por que não a arte?

Quando a gente não pensa a dança em termos da sua polifuncionalidade estamos deixando que a água penetre a terra, cumpra seu papel, embora não se transforme numa energia funcional que possa mover a natureza humana. Mas existem dimensões de energia na arte que não são superficialmente perceptíveis. Cientistas pesquisadores em dança há cem anos demonstram a dança a partir da investigação do movimento humano com fundamentos na cinesiologia, e na física dos fenômenos naturais, base de apoio do evento Eólitos que vocês verão daqui a pouco no palco.

Nesse sentido relaciono dança com o ambiente humano. Dá para pensar o mundo sem dança? A partir daqui pensamos que a dança é muitas coisas, desde a dança em si, como manifestação antropológica, mas também em relação à ciência, na sua dimensão maior e mais complexa como arte, ou um canal de energia para as necessidades que são latentes na atualidade que estamos vivendo. Dança contemporânea, Dança Moderna, quem as nominou e para que nominou? Qual é a dança onde sou e estou? Qual a dança contemporânea de mim mesma?

Eu sou contemporânea no sentido de ser contemporânea de mim mesma recusando ser uma marca de sabão, hoje atual, amanhã rejeitada como antiga e superada esperando o que virá depois. Algumas coisas são ditas “antigas”, superadas com três, quatro ou cinco mil anos, mas não estariam presentes no contemporâneo? Será que as estruturas de cinco mil anos não estão presentes hoje com sua carga de simbolizações? Lendo Shakespeare, que completará quatrocentos e cinquenta anos, encontramos vidas que podemos enxergar a nosso redor, qualquer que seja a marca colada à imagem, nosso corpo de braços abertos desenha ainda a arquitetura do norte sul leste oeste.

Nossos encontros com a natureza são tão antigos que posso dizer que sou antiga e contemporânea de mim mesma enquanto danço. Mas também posso investigar como a dança percorreu a natureza desde os momentos humanos mais antigos, canalizando mitos e ritos, então quais são os meus mitos e ritos hoje? Como ela está vivendo no meu ambiente? Eu acho que cada artista que pesquisa, que cria, vai dar a sua resposta indo além do pensar a dança numa visão ególatra. Hoje vivemos quase sem ritos, mas não podemos deixar de ver entre nós a sobrevivência das danças de rua, do carnaval, sem anular a questão espetacular da dança. Mas podemos também repensá-la na sua polifuncionalidade para ampliar nosso raio de ação, como estamos vendo neste projeto do Ambagris que me convidou a participar, portanto podemos pensá-la de muitas maneiras, com muitas parcerias, com muitas associações. Fazer dançar porque esta é a nossa natureza.

Geralmente, os bailarinos pensam na polifuncionalidade da dança na área do ensino de técnicas embora sua atuação não se caracterize pela pedagogia da dança, mas uma prática e uma visão unilateral aplicada à dança. A pedagogia da dança no Brasil é pouco aprofundada, figura de segunda classe. Por outro lado, bailarinos ativos pensam a polifuncionalidade da dança através de métodos de programação corporal com uma visão de corpo funcional não simultâneo ao ecossistema, movido apenas pelas oportunidades de mercado, e do corpo como objeto. Neste ponto da conversa quero apontar para o argumento central desta minha visão de dança e ecossistema, ou seja, é um sistema, ou ainda um minúsculo ponto decisivo como todos os outros integrando o rizoma incalculável do sistema geral porque, como sistema, a dança articula conhecimentos.

Esta questão da dança como não-objeto interroga onde e como estamos sobrevivendo, onde as nossas relações acontecem. Quem sabe, pensando na dança, podemos encontrar algumas questões a serem resolvidas por nós artistas, parece uma afirmação óbvia, mas não é assim. Cada um terá a sua, sem dúvida, porque como artistas nós sabemos que podemos muito, somos como as penas do pavão, você arranca, sai sangue e vem outra. E somos vaidosos como os pavões, abrimos um grande leque. Eu queria mostrar um trabalho pra vocês dentro dessa preocupação de um artista. Na perspectiva que estou apresentando nesta conversa informal quero apresentar um trabalho criado por mim, quando trabalhei com onze bailarinos jovens de 16 a 25 anos e onze bailarinos idosos, de 65 a 82 anos. Um trabalho complexo quando você se coloca frente a bailarinos com reduzidíssima capacidade corporal e outros em plena exigência de novos desafios, então você se pergunta: Como é que eles vão trocar de pele?

Prá Weidt o Velho é uma coreografia criada para a Bienal Internacional da Dança do SESC em 2008, com senhores e senhoras cujas histórias pessoais de muito trabalho estão no corpo da cidade de Santos, ouçam que a trilha sonora foi feita com os sons naturais do ambiente porque desejávamos que eles tivessem de volta, em outra dimensão, os apitos dos navios, os barulhos e gritos das crianças na praia os sons em que viviam, mas também o passear de braço dado na orla da praia, eles são jovens e velhos habitantes da cidade que fazem programas de ginástica com a prefeitura. E o SESC colocou umas tabuletas “Você gosta de dançar?”, “Você quer participar, então venha conversar”. E eles vieram.

Eu tinha clara consciência das limitações de corpo das pessoas idosas. Os mais velhos já tinham 82, 83 anos, fiz oficinas de andar e conversar, observar e ver quais eram os recursos pra dançar. E optei pelas mãos, porque elas são pra eles tudo. Com as mãos trabalharam, com as mãos fizeram comida, com as mãos lavaram roupa, afagaram a cabeça dos filhos, fizeram papa, com a mão brigaram. Então, com as mãos tudo que as mãos são, mais do que pensar na limitação do corpo, eu pensei na evidência das mãos quando outras partes do corpo se movem menos, quase que morrem, mas as mãos guardam a memória. Então a escolha foi assim porque eu busco a materialidade da dança, e não estou em busca de uma idéia, sou movida pela identificação da materialidade. Citei esta criação apenas como exemplo de pensar a dança como sistema.

Agradeço ao Ambagris a oportunidade de me comunicar com vocês.