Coreotopologia: O Método Topológico Relativístico na Arte do Movimento

Joana Lopes1,2 e Adolfo Maia Jr2,3.
GITD/ NICS/ IMECC
Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) – Brasil


1. Introdução

No Encontro Laban 2002 (Rio de Janeiro) apresentamos um trabalho indicando uma linha de pesquisa sob título Elementaridades II (Lopes et all 2002). Após 2002 reconceituamos a fundamentação labaniana, a partir da assertiva de Laban, em o Domínio do Movimento: “o espaço é a essencialidade da Arte do Movimento”. Neste sentido, a comparação dialética entre os paradigmas labanianos e os de nossa pesquisa demonstra que a dança de expressão (Ausdruckstanz) é conduzida por vetores e outros conceitos geométricos que se transformaram ao longo de sua própria história. Neste contexto, o resultado de nossa pesquisa é conduzido por princípios de relações espaciais e temporais que diferem dos vetores clássicos apontados, criando outros paradigmas para novas técnicas e processos de criação em dança.

Nosso método, oriundo de Elementaridades II, e que denominamos Método Topológico Relativístico (MTR), propõe a transposição simbólica de certos modelos derivados da física e da matemática, mais precisamente, do Modelo Padrão das Partículas Fundamentais da Matéria juntamente com conceitos da área de Topologia e ainda da Teoria da Relatividade Restrita de Einstein, principalmente sobre o papel (relativo) do observador. Desta forma, a estrutura do espaço-tempo interage com o movimento do artista, determinando perfis de movimentos através dos “defeitos topológicos do espaço” ou ainda “singularidades”. Isto nos levou à definição de Coreotopologia como estudo das qualidades e possibilidades dinâmicas do espaço reveladas pela criação e composição em Arte do Movimento, qualificada pela dança.

Como resultado do aprofundamento das relações entre a Coreotopologia e a Teoria do Effort (Laban), o Método Topológico Relativístico (MTR) deu origem a um espetáculo intitulado A Flor Boiando Além da Escuridão que teve sua estréia no Teatro da Universidade de Bolonha, Itália, em março de 2007 o qual pretendemos apresentar na Comemoração Laban 2008. Este tipo de composição em dança, a qual denominamos uma criação coreotopológica incorpora a capacidade do artista de alterar as qualidades do esforço segundo sua interação com o espaço-tempo, com suas variantes dinâmicas nos planos: físico, psíquico, mental e intelectual. Outra vertente da nossa pesquisa, ainda uma outra comparação crítica de Laban, a Coreodramaturgia deu a base dramatúrgica para que esta dança pudesse ser classificada como Teatro Coreográfico fundado por R Laban.

É nossa intenção, com este trabalho e o workshop a ele associado, após também à apresentação de A Flor Boiando Além da Escuridão provocar uma experiência das noções fundamentais de coreotopologia através do MTR integrado à apresentação de um espetáculo. Este trabalho resume também alguns dos resultados de nossa linha da pesquisa iniciada em 1998 e que estarão reunidos no livro A Microfísica da Dança, a ser publicado em 2008. Na próxima seção apresentamos alguns princípios sobre topologia, a disciplina matemática que constitui o substrato teórico para nossas idéias sobre o espaço pós-labaniano e a definição do que entendemos como Coreotopologia. Na seção 3 fazemos um paralelo entre as noções básicas de Laban sobre o espaço e as idéias sobre o espaço coreotopológico. Também nesta seção fazemos alguns comentários importantes sobre o reducionismo da arte de Laban. Na seção 4 expomos, com mais detalhe, a parte prática do nosso referencial teórico, isto é, descrevemos como podem ser pensados Experimentos Coreotopológicos em MTR, como também a noção associado de Transferência Simbólica necessária para uma realização de performances coreotopológicas.

2. Alguns Princípios de Topologia Geral e a Definição de Coreotopologia

Dado um conjunto qualquer E, uma topologia T é uma classe de subconjuntos de E (chamados conjuntos abertos de E ) que tem as propriedades bem simples tais como:

1) A intersecção de dois conjuntos abertos (isto é, elementos de T) é aberto.
2) O conjunto vazio Ф e o conjunto E, considerados também como subconjuntos de E, são abertos, isto é pertencem a topologia T.
3) A união de um número qualquer de conjuntos abertos é um conjunto aberto. Ou seja a união arbitrária de conjuntos de T, é um conjunto de T.

Um conjunto munido de uma topologia é denominado Espaço Topológico. A partir da definição acima, os matemáticos definem outras estruturas tais como conjuntos fechados, fronteira de conjuntos, interior de um conjunto, etc. No entanto, neste trabalho, o conceito mais importante derivado de uma topologia é a noção de vizinhança, isto é quando que dois pontos (ou objetos) são ditos próximos. È esta noção que queremos explorar em coreotopologia. Sem entrarmos em definições matematicamente precisas, podemos pensar mesmo intuitivamente em vizinhança de um bailarino ou de um objeto ou mesmo na vizinhança de um ponto arbitrário no espaço. A Coreotopologia pode então ser conceituada como o estudo e criação de movimentos no qual o espaço tem um papel dinâmico na qualidade do movimento. O elemento básico desta abordagem é o conceito de vizinhança. Por isto o espaço circunvizinho ao bailarino tem uma grande importância tanto na natureza do esforço como em cinesiológica.

Uma interessante analogia sobre as mudanças no comportamento dinâmico do bailarino como uma conseqüência de seu posicionamento no espaço é o caso do jogo de futebol. Na verdade muitos outros jogos podem ser tomados como exemplo desde jogos de infância até os mais populares, mas o futebol é bastante conhecido e serve bem para os conceitos que queremos passar ao leitor. Basta assistir um pouco um jogo de futebol que se observa que quando um time está no chamado campo de ataque, isto é, do lado do campo onde fica o gol adversário, seu comportamento é mais rápido e o movimento, principalmente os de finalização, tende a se dirigirem e se concentrarem em torno do gol, ou seja, o campo é modificado pelo objeto gols, que faz com que os jogadores se comportem de uma maneira peculiar. Ao mesmo tempo, os jogadores que estão no seu campo de defesa tendem a ter um comportamento mais lento, esperando os lances do ataque. Com isto queremos apenas mostrar que em muitos jogos tais como, futebol, voleibol e com muito mais razão ainda o basebol, a consciência do jogador de que o espaço está modificado pela simples colocação de certos objetos significantes é vital e que toda uma coreografia é gerada a partir disto. Na coreotopologia esta conscientização é extremamente importante se o espaço é para ser tomado seriamente como elemento dinâmico e participativo da expressão. Assim, queremos enfatizar o caráter didático do método Relativístico Topológico, pois ele torna, após um treinamento adequado, o bailarino cônscio de que o espaço não é mais indiferenciado, uma arena passiva, mas sim um elemento dinâmico para a expressão de sua arte.

3. O Espaço em Laban e na Coreotopologia

Laban é um platonista! Como cientista da dança ele articulou um sistema para analise, notação e criação nas artes do movimento. Sua teoria do espaço refunda a dança no século XX. Seu pensamento eminentemente geométrico tais como seu conceito de cinesfera, movimentos englobados em sólidos geométricos tais como cubos, icosaedros, tetraedros, quadro de esforços em referenciais do tipo cartesiano, fazem com que ainda a metricidade e a simetria sejam os paradigmas da sua arte do espaço. Laban, não se preocupa com a metricidade absoluta dos esforços do movimento do bailarino, e com isto flexibilizou a expressividade do bailarino, apesar de seu quadro de esforços ainda ser cartesiano, como mencionado acima. Mas seu espaço é ainda platônico. Seu movimento ainda é vinculado as simetrias das geometrias dos sólidos. Além disto, suas coreografias de massa também demonstram um grande apelo a simetrias e movimentos coletivos. Foi sua procura por uma notação para o movimento expressivo que o levou a esta matematização da arte do movimento que, além do caráter estético intrínseco, nos remete ao conceito de Reducionismo. Em ciência, reducionismo, também denominado reducionismo metodológico, é em geral entendido como um método pelo qual fenômenos físicos podem ser entendidos analisando-se seus aspectos particulares. Claramente este modo de pensar pode ser generalizado para outras áreas do conhecimento, tais como ciências sociais, ciências biológicas, e ainda, arte. Na sua abordagem científica da arte do movimento, Laban, necessariamente assumiu uma postura reducionista, postura esta, paradigmaticamente incorporada cartesianamente no seu Master de Esforços. Com tal diagrama Laban queria “deduzir” ou reduzir movimentos complexos em uma seqüência de movimentos simples (ou elementares) e passíveis de uma notação iconográfica.

Por outro lado, em si mesma a cinesfera não tem caráter reducionista (no sentido metodológico). Idealmente, carregada pelo bailarino para onde quer que se movimente, a cinesfera, junto com translações espaciais, realmente fornece todas as possibilidades de movimento do ser humano. Em linguagem matemática, pode ser dito que todos os movimentos de um corpo rígido (no caso um ser humano) podem ser definidos num produto cartesiano de grupos de rotação (dos braços, pernas, cabeça, etc) com o grupo das translações espaciais. É na análise científica de movimentos complexos de um bailarino que o reducionismo acontece. O reducionismo na arte do movimento tem seu exemplo mais recente nas pesquisas de movimentos robóticos com o objetivo de mimetizar seus equivalentes humanos. No entanto, as complexidades dos detalhes (e a graça) dos movimentos humanos (e de alguns animais) são muito difíceis de serem simulados ou imitados. A característica mais importante do Método de Laban é que, em se analisando movimentos humanos, do ponto de vista científico, pode-se concentrar a atenção em aspectos importantes em vez de tentar uma apropriação total (e fatalmente impossível) do movimento. Nenhum julgamento estético pode ser feito sobre o Método de Laban. É somente um método, poderoso e com grande apelo intelectual, cuja necessidade de notação, força-o ao reducionismo metodológico.

Paradoxalmente, reducionismo na Arte do Movimento pode levar à interessantes performances onde o aleatório tem um papel importante. Isto porque, concentrando-se, como mencionado acima, em aspectos importantes do movimento (estrutura grossa) pode-se deixar o corpo à vontade para que movimentos involuntários (estrutura fina) também façam parte do movimento. Isto pode ser realizado, efetivamente, em nosso trabalho Elementaridades (Lopes et all, 2000) no qual assumimos, não um abordagem métrica, mas topológica, do movimento. Por exemplo, concentrando-se na realização dos conceitos de liberdade assintótica e confinamento, os outros detalhes do movimento dos bailarinos são arbitrários e dependem somente da sua condição física e mental e com isto ele fica livre para reagir ao próprio movimento e para criar simbolicamente.

4. Experimentos Coreotopológicos em MTR: Transferência Simbólica

Como mencionado acima, nossas primeiras experiências e o referencial teórico para um espaço in-homogêneo ou topológico veio de um modelo inspirado no movimento em partículas elementares da matéria chamadas quarks, as quais são permanentemente confinadas dentro de, por exemplo, prótons e nêutrons, mas também apresentam o fenômeno de liberdade assintótica, que quer dizer que mesmo confinadas em certas regiões dentro de prótons e nêutrons, elas se comportam como se estivessem livres. Em Elementaridades II aprendemos que:

• a riqueza dos movimentos inspirados no comportamento microscópico das partículas elementares (razão pela qual denominamos nosso modelo topológico de Elementaridades).
• uma nova abordagem do espaço, tempo e observador inspirada na Teoria de Relatividade de Einstein.
• O espaço, ou arena, tem agora um caráter dinâmico e interage com o dançarino. Ele pode conter certas modificações as quais correspondem na matemática aos chamados “defeitos topológicos do espaço” ou ainda singularidades.
• Os movimentos podem ainda ser influenciados por campos de força físicos ou por objetos materiais imersos no espaço tornando-o in-homogêneo.

Nossa proposta, no entanto, vai muito além do exemplo de Elementaridades II. Na verdade, experimentos com coreotopologia podem ser muito simples, tanto como jogos infantis nos quais existem regras sobre o espaço permitido como jogos populares. Também podemos propor exercícios de aquecimento que levam o bailarino a uma conscientização do caráter in-homogêneo do espaço físico.


Por exemplo, podemos propor ao nosso participante a experiência com as propriedades topológicas de confinamento e liberdade assintótica, segundo o princípio geral topológico de vizinhança, simplesmente demarcando regiões onde eles devem se comportar como as partículas em Elementaridades II.

Este modo de se comportar no espaço, sem que aparentemente os observadores “vejam” alguma modificação nele, tem como base a noção de transferência simbólica, que é a maneira que o bailarino vai adequar sua seqüência de esforços visando com isto transferir ao observador a informação sobre a in-homogeneidade do espaço. Em outras palavras, o bailarino transfere ao observador a informação do espaço que o circunda. No MTR, em geral esta transferência simbólica é determinada em cenas de espetáculo por protocolos técnicos cinesiológicos (Lopes e Maia, 2008). O resultado esperado será, neste contexto, uma composição de movimentos que não possui as características das coreografias métricas.

A arena topológica do MTR traz uma nova atitude para o artista e o artista educador. As coordenadas cartesianas e a geometrização do espaço desaparecem, proporcionando ao bailarino um maior fluxo de energia condicionada agora, de uma maneira mais fraca, pela sua interação com o espaço em volta dele. Portanto, a administração da energia, ou dos esforços, não será condicionada pela geometrização continente, mas pela sua atenção ao espaço acessível, aliada ao seu grau de preparo corporal como um todo. Deve-se, no entanto, observar que em uma cena coregráfica não é o esforço em si o objeto básico, mas sim as combinações dos esforços que darão o sentido semântico à cena desejada. As combinações dinâmicas de movimento também presente na coreologia labaniana possuem, como todo o resto da teoria do espaço de Laban um determinismo que o MTR não possui. No entanto, este fato não indica que o MTR seja baseado na aleatoriedade, ou ainda simplesmente na subjetividade da improvisação. O MTR possui uma técnica de execução com a finalidade de combinar novas e constantes dinâmicas em função de um espaço dinâmico, interagente com o bailarino. O cartesianismo de Laban não é incompatível com os conceitos coreotopológicos. Estende-o para espaços e movimentos mais gerais, do mesmo modo que, em matemática, os chamados espaços métricos são apenas um exemplo das infinitas possibilidades dos espaços topológicos.Neste sentido, o espaço labaniano é apenas uma das possíveis realizações de um espaço coreotopológico. Assim, o espaço labaniano pode então estar presente nas improvisações que façam os bailarinos através de seu treinamento corporal, pois a educação labaniana, simétrica e cartesiana, não impede uma criação expressiva mas empresta a ela uma harmonia de ordem clássica, uma estética harmoniosa, fruto de um espaço homogêneo. Por outro lado em MTR, parâmetros tais como tempo, peso, e fluxo no método MTR não serão pré-determinados, ou não podem ser determinados sem levar em conta o espaço como elemento dinâmico e influenciador do movimento.

5. Conclusões e Perspectivas

Laban veio para ficar! Isto se deve ao alto de grau de abstração de sua arte, o que a faz de uma plasticidade e adaptabilidade suficiente para ser aplicada em um sem número de diferentes atividades da dança e da arte do movimento. Nosso trabalho, com o MTR, generaliza e potencializa as possibilidades do método de Laban para o movimento expressivo com a substituição do espaço labaniano estático para um espaço dinâmico, interagente com o bailarino/executante. Para realizar tal proposta foi necessário tomar emprestado da topologia, uma bela área da matemática, o conceito de vizinhança. Claramente, novas extensões deste trabalho são possíveis com a um tratamento mais adequado da interação do bailarino, o espaço coreotopológico e o observador (o que assiste ao espetáculo). Nos nossos trabalhos anteriores presumimos que alguns conceitos da Relatividade Especial de Einstein poderiam ser relevantes, tais como a própria relatividade do observador. Além disto, o uso de meios tecnológicos poderia influir muito nesta questão, no sentido que certas tecnologias de som e imagem poderia “filtrar” o espaço não-homogêneo fazendo com que observadores com filtros diferentes tivessem leituras diversas tanto do espaço como de um espetáculo como um todo.


Agradecimentos

Os autores desejam agradecer a Andréia Yonashiro que, com seu entusiasmo e profissionalismo realizou as experiências e performances associadas a esta pesquisa, inclusive o espetáculo A Flor Boiando Além da Escuridão. Também agradecemos aos Profs. Drs. Jônatas Manzolli e Raul do Valle do Núcleo Interdisciplinar de Comunicação Sonora (NICS) e Instituto de Artes da UNICAMP pela contribuição nas trilhas sonoras e muitos discussões sobre o nosso trabalho. Por fim A. Maia agradece ao CNPq pelo apoio de bolsa de pesquisa em 2008.




Bibliografia

Laban, R. L’arte del movimento. Ephemeria Editrice, Bolonha, ISBN 88-87952-00-6, (1999).
Lopes, J e Maia, A., A Microfísica da Dança, (a ser publicado) (2008).
Lopes, J e Maia, A, Elementaridades II, Atas do Congressos Laban 2002, Rio de Janeiro, RJ, (2002).
Lopes, J., Manzolli, J., Maia Jr., A., Valle, R., Elementaridades: A Labanian Representation of Matter´s Structure in the Universe, Unicamp, 1999. Apresentado no Congresso Internacional “L´ombra dei Maestri. Rudolf Laban: gli spazi della danza”, Bologna, Itália, (2000).